Alguns pontos de encontro entre a fotografia de Claudia Andujar e o xamanismo Yanomami

Adriana Amosso Dolci Leme Palma. Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP) e o Departamento de História da Arte da Universidade Westfälische Wilhelms de Münster

Os termos xamã e xamanismo  muitas vezes refletem uma abstração concebida a partir do ponto de vista ocidental para dar conta de compreender fenômenos e comportamentos advindos de culturas distintas daquelas centradas no modo de vida urbano, capitalista, industrializado, disseminado a partir da Europa ocidental e dos Estados Unidos. Conforme Jeremy Narby comenta:

O termo “xamanismo” foi inventado pelos antropólogos para classificar as práticas menos compreensíveis dos “primitivos” […] A partir do início do século XX, os antropólogos progressivamente ampliaram o uso desse termo siberiano e encontraram xamãs na Indonésia, em Uganda, no Polo Norte e na Amazônia. […] Por volta da metade do século XX, no entanto, os antropólogos começaram a não só perceber que os “primitivos” não existem como tal, mas também que os xamãs são menos loucos do que se pensava […] Em 1949, num ensaio que foi um divisor de águas, Lévi-Strauss afirmou que o xamã […] é uma espécie de psicoterapeuta – com a diferença que “o psicanalista escuta, enquanto o xamã fala” […] De 1960 a 1980, as autoridades mais reconhecidas da disciplina definiram o xamã sobretudo como um criador de ordem, alguém que domina o caos ou evita a desordem. […] A partir dos anos 1970, surgiu um novo discurso, apresentando o xamã não só como criador de ordem mas também como um especialista em toda espécie de ofício: ao mesmo tempo ‘médico, farmacêutico, psicoterapeuta, sociólogo, filósofo, advogado, astrólogo e padre. Durante os anos 1980, por fim, alguns iconoclastas afirmaram que os xamãs são, antes de tudo, criadores de desordem! Quem são os xamãs? (NARBY, 2020, E-BOOK, P. 18-19).

Essas características que historicamente foram associadas pelo ocidente aos xamanismos não necessariamente conseguiram contemplar as especificidades culturais de variados povos detentores de práticas xamânicas.

O trabalho artístico de Claudia Andujar (Neuchâtel, 1931) pode ser tomado como exemplo de um outro percurso da cultura ocidental buscando entender uma cultura distinta da sua, pautada pela noção de xamanismo ou de experiência xamânica. As obras da artista parecem contribuir para tornar inteligível para a sociedade centrada na epistemologia eurocêntrica,      as formas de existência Yanomami[1].

Assim, o presente texto objetiva fazer uma breve reflexão em torno dessas relações a partir de análises de fotografias da série Sonhos Yanomami, produzida entre 1971 e 2003[2], enfatizando aspectos dos xamanismos que são fundamentais ao modo de vida dos Yanomami e as percepções de Claudia Andujar sobre eles.

Algumas palavras sobre os xamanismos

Foi no cerne da      Antropologia, disciplina nascida no contexto europeu do século XIX, que a palavra saman – originária dos povos tungues da Sibéria para denominar alguém que entra em transe e cura pessoas – foi tomada para denominar determinadas práticas realizadas em diversas partes do mundo, dando origem ao termo xamã.

Os fenômenos inseridos no guarda-chuva conceitual intitulado por xamanismo são bastante variados e antigos, ocorrendo em diversas partes do mundo. Atualmente o termo é amplamente difundido, sendo utilizado por estudiosos e também por parte das comunidades indígenas. Outros termos análogos, como pajé e pajelança, oriundos da língua tupi-guarani, também são frequentemente usados em comunidades do Brasil.

Na América do Sul, essa diversidade das práticas dos xamanismos está presente em vários aspectos, como, por exemplo, na figura do xamã que pode assumir uma posição central em diversos povos, embora em outros haja a prática do xamanismo sem tal figura[3]. Ainda há situações inversas, em que cada integrante da comunidade é um xamã. Os xamanismos estão presentes tanto na cidade quanto na floresta. Há também o uso de plantas mestras que podem ser em algumas culturas ferramentas potentes do xamã, mas em outras constituem-se como o próprio xamã, a exemplo da      ayahuasca.

Sobre as práticas xamânicas da região amazônica, Viveiros de Castro (2022, p. 327) comenta:

O xamanismo pode ser definido como a capacidade manifestada por certos humanos de cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades não-humanas. Sendo capazes de ver os não-humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs ocupam o papel de interlocutores ativos no diálogo cósmico. Eles são como diplomatas que tomam a seu cargo as relações interespécies, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam as diferentes categorias sócionaturais. Pareceu-me claro, então, que o papel do xamã não difere essencialmente do papel do guerreiro. Matadores e xamãs são comutadores ou condutores de perspectivas, os primeiros comutando o “eu” e o “outro” intra-humanos, os segundos o “eu” e o “outro” interespecíficos. Como já se disse tantas vezes, o xamanismo é a continuação da guerra por outros meios: mas isso nada tem a ver com a violência em si mesma, e sim com a comunicação. Portanto, seria igualmente correto dizer que a guerra é a continuação do xamanismo por outros meios. Na Amazônia, o xamanismo é agonístico tanto quanto a guerra é sobrenatural.

O xamã Davi Kopenawa (KOPENAWA, ALBERT, 2015) defende que seu povo, Yanomami, apesar de ter modos de vida distintos dos ocidentais, possui uma longa história permeada pelo xamanismo, portanto também é detentor de uma cultura tão dinâmica quanto esta. Esse histórico de práticas xamânicas está presente há séculos em diversos povos da América do Sul[4].

Experimentalismos na fotografia de Claudia Andujar

Andujar não separou sua arte da sua própria vida e da vida dos Yanomami, que segundo a artista, tornaram-se sua família. Claudia nasceu na Suíça, mudou-se para o Brasil após perseguição nazista, que dizimou parte da sua família. Ela usava suas fotografias para se comunicar na época em que chegou nas terras brasileiros, em meados da década de 1950.

Em 1971, quando esteve entre os Yanomami, pela primeira vez, não falava a língua deles, o que iria aprender posteriormente, e a fotografia também foi meio de comunicação, reconhecimento e conexão com aquele novo contexto de vida na floresta, criando uma espécie de tradução visual de suas interpretações daquela situação[5].

     Sonhos Yanomami foi produzida no início dos anos 2000 a partir de fotografias feitas desde a década de 1970, após trinta anos de trabalho e luta política junto aos Yanomami, quando Claudia encerrava suas atividades à frente da Comissão Pró-Yanomami[6], que logrou a demarcação dos territórios daquele povo entre outros feitos.

Andujar localiza a série Sonhos Yanomami em sua trajetória:

Considero a série “Sonhos” um turning point em minha experiência com os Yanomami. As imagens que compõem a série revelam os rituais xamanísticos dos Yanomami, sua reunião com os espíritos. A partir de sua criação, eu comecei a conceber uma interpretação imagética acerca dos rituais, fato que me deu acesso à genealogia do povo, aglutinando aspectos da cultura e dissolvendo as fronteiras entre os seres humanos, seus deuses e a natureza, integrando todos em um fluxo contínuo [7].

 As cerca de 20 imagens fotográficas que compõem a série são realizadas a partir de fotografias originalmente feitas em preto e branco, sobre as quais Andujar fez sobreposições de outras imagens fotográficas, também de sua autoria, e adicionou cores. Assim, o conjunto reúne experimentações fotográficas desenvolvidas pela fotógrafa ao longo de sua carreira para registrar diferentes momentos do cotidiano desse povo, tais como: iluminação à base de lamparinas, lente grande-angular na qual aplicou a vaselina, ou ainda chacoalhava a câmera, usava baixa velocidade de obturação, fazia múltiplas exposições para sobrepor imagens em um mesmo quadro, entre outras[8].

As fotografias a seguir (imagens 1 e 2) mostram o rosto de uma pessoa mesclando-se com árvores gigantes e um animal aparece fundido ao céu, de modo a evidenciar uma unidade entre os elementos, sugerindo a não separação entre homem e natureza. Essa é uma forma de pensamento comum a diversos povos ameríndios, a exemplo dos kichwas de Sarayaku no Equador[9], que usam o termo Selva Viva para se referir à interconexão entre todos os seres vivos e, portanto, aos seus direitos territoriais e à natureza.

Imagem 1: Floresta amazônica, Pará – série Sonhos Yanomami, 2002. Fonte: Galeria Vermelho.
Imagem 2: Sem Título – da série Sonhos Yanomami, 2002. Fonte: Galeria Vermelho

Na Imagem 3, a seguir, aparece uma cena de caráter onírico, uma silhueta de uma figura humana em destaque à frente de um grupo de pessoas e rodeada por raios luminosos, sugerindo esse contexto de aproximação entre humanos e seres de outras esferas.

Imagem 3: Guerreiro de Toototobi – série Sonhos Yanomami, 2002. Fonte: Galeria Vermelho.

Rituais xamânicos      Yanomami são momentos de encontros e diálogos entre os vários seres, as águas, os animais, os humanos e os elementos invisíveis e transcendentes. Os homens e xamãs inalam o pó yãkoana e entram em contato com os espíritos da floresta, denominados xapiripë, que são brilhantes e dançam. Sobre esses encontros Davi Kopenawa explica:

Os xamãs, como eu disse, não dormem como os demais homens. De dia bebem o pó de yãkoana e fazem dançar seus espíritos diante de todos. À noite, porém, os xapiri continuam dando-lhes a ouvir seus cantos no tempo do sonho. Saciados de yãkoana, não param nunca de se deslocar e seus pais, em estado de fantasma, viajam por intermédio deles. É desse modo que os xamãs conseguem sonhar as terras devastadas que cercam a nossa floresta e com a ebulição das fumaças de epidemia que surgem delas (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 332).

A série evidencia leituras de Andujar de partes da cosmovisão Yanomami e de momentos rituais, a partir de diálogos e trocas com os próprios Yanomami, conforme a artista comenta:

Mas, o que me dá uma certa satisfação é que quando eu mostro esse trabalho aos Yanomami eles percebem isso. Eles fazem o que faziam com os desenhos, ele vê essa imagem com toda essa invasão de luz e ele começa a contar a sua história. Um dia eu tinha esse trabalho Sonhos na Galeria vermelho exposto e o Davi [Kopenawa] estava lá, estava em São Paulo e eu levei ele lá. Ele começou a falar, explicar o que eram aquelas fotos para mim, para quem estava lá. Eu estava lá, tinha umas pessoas da galeria e ele falou: “agora eu vou explicar para vocês o que vocês estão vendo”. As pessoas ficaram com a boca aberta: “mas como? Quem tem que explicar isso é a Cláudia, como que você sabe”. “Ah, porque eu sei, eu sei mais do que ela.”. Ele não falou isso. Mas ele falou: “Eu sei o que é isso.”. Claro, não tenho dúvida, eu não sei tudo. De jeito nenhum. Eu tentei enxergar o que eu entendi (ANDUJAR apud MAUAD, 2012, p. 139).

Sonhos Yanomami evidencia a comunhão dos pensamentos de Andujar com o aprendizados e vivências tidas junto aos Yanomami. Em meio aos refazimentos da artista no Brasil, na busca por sua própria identidade, ela encontrou nos Yanomami uma família, o que se torna evidente nas várias trocas entre ela e o xamã Davi Kopenawa. Obviamente que esse contato não ocorre sem ruídos e problemas, próprios desse âmbito das relações interculturais[10]. Mas, apesar da complexidade desse encontro cultural, ele resultou em frutos positivos na luta pela sobrevivência do povo Yanomami, ao reunir as forças dos Yanomami, de Andujar entre outras pessoas. Ações da Comissão Pró-Yanomami deram origem não só à homologação do Território Yanomami, mas também a outras iniciativas posteriores. A atual organização indígena Hutukara Associação Yanomami, que promove ações políticas, de promoção de saúde, difusão cultural, é exemplo disso. As fotografias de Andujar vem sendo utilizadas, desde fins da década de 1970, na divulgação e sensibilização da causa desse povo que continua ameaçado pelo garimpo ilegal e desmatamento até hoje. A organização política indígena por meio de associações e divulgações de suas cosmovisões e condições de vida mostra-se uma ação essencial na luta pelos direitos e territórios desses povos. Isso não ocorre apenas no Brasil, mas em outros países também, a exemplo do Equador, com a já mencionada comunidade do povo Kichwa de Sarayaku (TAYJASARUTA), que também divulga suas atividades e lutas por meio de textos e imagens online, realiza a autogestão do seu território, promove a luta política e abre partes de seus espaços para visitação externa.

Referências:

ALBUQUERQUE DE MORAES, Ana Carolina. Sonhos, de Claudia Andujar: Experimentalismo e Cosmovisão Yanomami. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2023.

CLAUDIA ANDUJAR: Sonhos Yanomami / Yanomami Dreams (2002-2004). Folder de exposição. Galeria Vermelho.

KOPENAWA, D. e ALBERT, B. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MAUAD, Ana Maria. Imagens possíveis: fotografia e memória em Claudia Andujar. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, 2012, pp. 124-146.

NARBY, Jeremy. A serpente cósmica, o DNA e a origem do saber. Dantes Editora; 1ª edição em português, 2020. E-book.

NOGUEIRA, Thyago (Org.). Claudia Andujar: a luta yanomami. São Paulo: IMS, 2018.

SÁEZ, Óscar Calavia. Xamanismo nas terras baixas: 1996-2016. BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, n. 87, 2018, pp. 15-40.

VIVEIROS DE CASTRO “A inconstância da alma selvagem”. São Paulo: Cosac Naify, 2002.


[1] Povo originário do extremo norte da floresta amazônica brasileira, ocupa território homologado em 1992 nos estados do Amazonas e Roraima.

[2] É difícil precisar as datas de determinadas obras de Claudia Andujar, a série Sonhos Yanomami possui três montagens distintas com datas variadas. Ao considerarmos esse intervalo temporal para a série, estamos de acordo com pesquisa realizada por Albuquerque de Moraes, 2023.

[3] Sáez (2018, p. 18-19) esclarece sobre isso: “ Até que ponto o xamã deve ser um sujeito particular, detentor de saberes esotéricos? A resposta é muito variável: processos de iniciação xamânica, incluindo o aprendizado de cantos ou técnicas específicas, podem ser marcados, árduos e longos (CHAUMEIL, 1998; LANGDON, 2014), mas também podem faltar ou – o que é mais interessante – podem conviver em paridade com experiências comuns, como a do sonho (OROBITG, 1998). A identidade do xamã nem sempre depende em primeiro lugar dessa capacitação: pode estar ligada ao exercício da chefia (LANGDON, 2014), à condição de caçador (LÓPEZ, 2006) ou de homicida (FAUSTO, 2001). A aptidão xamânica não é exclusivamente humana, sequer caracteristicamente humana: alguns animais, como os queixadas, têm seus xamãs (LIMA, 1996), e os cães podem ser transformados em xamãs (KOHN, 2013); deuses ou espíritos são xamãs e, como tais, operam sobre a vida humana (ALEXIADES, 1999; BARCELOS NETO, 2008; OROBITG, 1998); os dardos do xamã são xamãs (RODGERS, 2002) […]”.

[4] Em viagem de campo ao Equador com o grupo do Seminário “Conectar a fronteira amazônica: fluidez artística e cultural na primeira modernidade”, financiado pelo projeto Connecting Art Histories da Getty Foundation e setembro de 2023, foi possível visitar diversas coleções de peças arqueológicas pré-colombianas como aquelas do Museo Arqueológico y Centro Cultural de Orellana e do Museo Pumpabungo, nas quais constam itens relacionados a xamanismos. O Museo del Alabado de Quito possui um catálogo intitulado El mundo de los espíritos en el Ecuador Precolumbino organizado a partir de itens da coleção do museu, com textos de Iván Cruz Cevallos, que reúne peças arqueológicas associadas a práticas xamânicas de diferentes povos que habitaram a região e períodos.

[5] Entrevista de título: Claudia Andujar – Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo. Itaú Cultural. 25 de out. 2010. Minutos: 11:00 e 12:13. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=lZ-ST25KWXY , acesso em 20/12/2022.

[6] Essa comissão foi criada com o nome Comissão pela Criação do Parque Yanomami por Claudia Andujar juntamente com o xamã Davi Kopenawa, o antropólogo francês Bruce Albert e o missionário italiano Carlo Zacquini, entre outros colaboradores.

[7] Parte de entrevista publicada na ocasião da exposição Identidade, Fondation Cartier, Paris (2005), retirada do folder de apresentação da exposição “Sonhos Yanomami”, da Galeria Vermelho, 2021.

[8] Informações disponíveis em https://claudia-andujar.fondationcartier.com/pt-br/chapters/interpretando-a-cultura-yanomami , acesso em 20/11/2023.

[9] O acesso a essa comunidade também foi realizado no contexto da viagem provida pelo seminário “Conectar a fronteira amazônica: fluidez artística e cultural na primeira modernidade”, financiado pelo projeto Connecting Art Histories da Getty Foundation e setembro de 2023.

[10] Problemas evidenciados, por exemplo, pelo relato de Andujar sobre a fala dos visitantes que ouvem Davi explicar suas imagens fotográficas e não creditam a ele a autoridade para tal ato, desconsiderando seu papel fundamental de porta voz daquela cultura enquanto liderança Yanomami.

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