Circulação e sociabilidades da “caja” kichwa de sarayaku

Bernardo W. Marques-Baptista. Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Arte, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Kichwas e Sarayaku

Os quíchuas são povos indígenas da América do Sul que falam a língua quíchua e estão presentes em países sul-americanos, principalmente na Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Argentina e Chile. No Equador utilizam a grafia “Kichwa” como designação, e são uma das 13 nacionalidades originárias      do país. Estão presentes tanto nos Andes quanto na Amazônia equatoriana. São constituídos por subgrupos onde costumes e práticas diferem. Os princípios da vida comunitária e da integração entre ser humano e natureza é o que une estas nacionalidades.

Sumak Kawsay, em tradução livre “bem-viver” ou viver em plenitude, é uma      percepção de mundo que rege estas nações originárias equatorianas. Esta noção se baseia em cinco princípios: sem conhecimento ou sabedoria não há vida (Tucu Yachay); todos surgimos da mãe terra (Pacha Mama); a vida é plena (hambi kawsay); a vida é coletiva (sumak kamaña); e todos temos ideais ou sonhos (Hatun Muskuy) (Acosta, 2016). Esta, e noções similares, têm sido consideradas e inseridas nos processos de reformulação das constituintes e de planos nacionais de desenvolvimento em países da América do Sul no século XXI, como oposição aos ideais de desenvolvimento econômico capitalista, colaborando com uma inserção política não ocidental e ampliação do pensamento contra-colonial local e global.

Como parte integrante do projeto “Conectar la frontera amazónica: fluidez artística y cultural en la modernidad temprana” realizamos oficinas em territórios amazônicos no Equador em 2023, muito interessados em observar estas resistências, (re)existências e políticas pautadas por uma lógica indígena da alteridade. No dia 26 de setembro partimos em direção à Sarayaku, Território Kichwa situado na província de Pastaza, região centro-sul da Amazônia equatoriana, que tem como idiomas o espanhol e o quíchua. Saímos de Puyo, capital da província, em direção à um porto em Canelos onde fomos recebidos por Gerardo Gualinga e uma equipe de locais, descendo o rio Bobonaza em embarcações pequenas até nosso destino. Gerardo é uma importante liderança de Sarayaku, tendo sido Kuraka[1] e líder do grupo de segurança interna WIO, coletivo estabelecido em 2004 através do estatuto do Povo Nativo Kichwa de Sarayaku e que tem um papel importante garantindo as regras de coexistência e da paz local.  Ele e sua família nos acompanharam durante os dois dias de estadia em Sarayaku provendo hospedagem, alimentação e apresentando o território.

Em nossa primeira saída rumo ao centro do povoado passamos pela casa de Gerardo Gualinga, que dispõe de um pátio coberto com uma estrutura de palha – uma maloca –, onde fizemos reuniões e vivências durante os dias que permanecemos no território. Me chamou atenção um tambor que estava pendurado na estrutura da maloca, bem próximo à porta de sua casa, como se      estivesse constantemente disponível e acessível ao uso. Ao longo dos dias de imersão pude conhecer mais sobre este objeto e sua importância no cotidiano da comunidade.

Caja de Gerardo Gualinga disposta em maloca. Foto do autor.
Gerardo Gualinga e sua caja. Foto do autor.

Caja Kichwa e suas sociabilidades

Este membranofone é chamado de caja pelos Kichwas. As cajas atuam como instrumentos musicais, e como objetos mediadores de dinâmicas sociais. Sua utilização e presença diferem entre os povos Kichwa da Amazônia. Os tambores kichwas estão presentes em casamentos, ritos de gestação e nascimento (Calapucha et al, 2012), movimentos por reivindicação de direitos, trabalhos comunitários, reuniões e festas locais. Em Sarayaku estão nas mingas, chichadas, visitas oficiais a outras comunidades, e em festas de grande importância para o povo Kichwa de Sarayaku, conforme o relato de Gerardo, exposto a seguir.

Entrevista de Gerardo Gualinga:

De acordo com Gerardo Gualinga, crianças do sexo masculino, com faixa etária entre 7 e 12 anos, aprendem com Maestros – pais, tios, avôs ou parentes – a produzir e tocar suas cajas. Estes conhecimentos são repassados no cotidiano familiar e reforçados no ambiente escolar. Sarayaku possui um centro de educação tradicional chamado Escola Tayak Wasi, também conhecido como Escola de Resistência Pacífica. A escola se dedica à transmissão, aprendizagem e revalorização dos conceitos ancestrais e do pensamento filosófico da Kawsak Sacha. Kawsak Sacha é, portanto, um conceito / proposta política / prática cotidiana que pensa a conservação do território natural enquanto um ser vivo, consciente, constituído por todos os seres da Selva Vivente, como sujeito de direitos. Esta base da estrutura socio-cosmo-política integra os princípios de vida do povo de Sarayaku. O centro educativo, criado em 1994, colabora no fortalecimento dos pilares do “bem-viver” fortalecendo os princípios da vida comunitária, da terra saudável, e da perpetuação das práticas culturais e espirituais ancestrais amazônicas.

El territorio de Sarayaku no es solo un espacio físico y geográfico sino el lugar desde donde elevamos nuestras emociones al entrar en conexión com el mundo de los Seres Protectores de los sítios vivientes, con quienes sostenemos relaciones que nos permiten reproducir nuestros sistemas económicos, nuestras tecnologias propias, nuestros conocimientos y ciência; nuestra vida social, cultural, espiritual; nuestros sistemas organizativos y políticos para construir nuestro futuro, decidir nuestros destinos de forma autónoma y asegurar nuestra continuidad como Pueblo originario. Pueblo Originario Kichwa de Sarayaku, 2018, p.3

Em Sarayaku a Aswa, ou chicha, bebida fermentada de mandioca, tem papel central nas ações comunitárias e na vida dos Kichwa Runa. A chicha amplia a harmonia entre a comunidade, possibilitando importantes trocas, fortalecendo pessoas e relações. Na manutenção do roçado de mandioca (chagras ou chakras) participam homens e mulheres; já a produção da bebida e da cultura material relacionada à chicha (cuias e jarras de cerâmica) ficam a cargo das mulheres, enquanto os “convites” e integração da comunidade nas “chichadas” são responsabilidade dos homens. A caja é uma importante acompanhante dos fazeres desta beberagem. Atuam como chamamento da chicha: quando a chicha é feita nas residências os tambores tocam avisando que há bebida. O som do tambor significa que todas as pessoas que quiserem podem ir tomar chicha naquela casa porque há em abundância.

As mingas, ou minkas, são mobilizações coletivas para execução de serviço que beneficie a comunidade ou uma família. Um conceito andino e milenar que sintetiza relações de reciprocidade, compromisso e complementaridade através do trabalho comunal, sistema de trabalho que também foi utilizado durante o império Inca. Nas mingas comunitárias participam todas as comunidades, sendo coordenadas pelo Conselho de Governo de Sarayaku e pelos sete Kurakas. Ações em prol do bem-estar geral são realizadas nestes encontros, organizados com um mês de antecedência. O Kuraka encarregado pela minga convida a comunidade local para participar da ação coletiva, e a chicha para esta ocasião é produzida por sua esposa (kuraka mama), sendo servida após a realização do trabalho, em uma festa onde se bebe e dança ao som das cajas.

Uyanza Raymi

As cajas são feitas de madeira de cedro esculpido com circunferência entre 23 e 25 cm, peles animais em ambos os lados, sendo o couro que se golpeia (waktana) de peccary (queixada) e o couro que ressoa (tzigaru) de mono nocturno, enquanto a tensão e afinação das peles é feita por uma fibra vegetal da palma Pacaya (do gênero botânico Chamaedorea), trançada e presa em zigue-zague que nomeiam de chambira. Sendo a caja feita dos principais materiais zelados por Amazanka[2], é uma materialidade que conecta e cria ressonâncias com o imaterial de sacha (selva).

A Uyanza, ou Uyantza, festa que “presta homenagem e agradecimentos pela bondade e abundância concedidas por Amazanka e pela Mãe Terra” (Pueblo originario kichwa de sarayaku, 2022), é realizada de forma trienal, nos meses de fevereiro. A cerimônia era realizada anualmente, mas teve sua regularidade alterada visando a conservação local. Em Sarayaku é Amazanka “quem autoriza a caça para sustento familiar, nunca por simples diversão” (Pueblo originario kichwa de sarayaku, 2022).  É a maior e mais importante festa de Sarayaku, sendo realizada desde tempos remotos e que festeja a vida. São cerca de duas semanas de Uyanza que englobam saídas para caça, produção de Aswa (chicha), celebrações, matrimônios e o convívio social com o território. Há uma complexa organização na festividade, onde os festeiros/anfitriões (e suas famílias) são escolhidos para organizar a festividade junto à comunidade. Estes são conhecidos como “Yachukkuna”, divididos em 4 “casas”: lanza, warmi wawa, kari wawa y rusariu mama. Essas delegações, determinadas dois anos antes em comum acordo, orientam as responsabilidades da festividade, como a produção de mandioca, busca por ajudantes e tamboreiros, as saídas para caça, e a produção de Aswa, que é utilizada para consumo e banho durante os dias da Uyanza. Realizadas na praça central de Sarayaku e acompanhadas pelos tambores, os banhos de chicha seriam uma metáfora para a regeneração do território a partir do período das chuvas que se iniciam nesta época do ano (Santos, 2022).

A festividade inicia com a “Yantankichu” que é uma minga da lenha, onde a comunidade se reúne para coletar e doar lenha aos anfitriões que estão responsáveis por produzir chicha, e assar os alimentos que serão consumidos na celebração. Dois dias depois da minga da lenha cerca de 200 homens partem para a caçada. “Ringuichu” é o período de 14 dias em que homens adultos e jovens partem para o interior de Sacha. Na manhã, antes de sair para caçar, os homens com todos os equipamentos de caça tocam seus tambores e dançam na praça central. Para purificar a energia, as apa mama (avós) de Sarayaku, colocam urtigas nos pés e colocam ruyak allpa (lama branca) e yana allpa (lama preta) como camuflagem para os rostos dos valentes caçadores antes de entrar na selva. As mulheres que ficaram na cidade produzem as mais belas cerâmicas de barro (mokawas, kallianas e purus) para fornecer chicha e comida nos dias de festa. Após os 14 dias ouve-se o som de tambores anunciando o retorno dos caçadores que trazem carne e peles de animais. As mulheres os aguardam com centenas de litros de chicha, mokawas e com pinturas no rosto, às margens do Rio Bobonaza. Nas casas dos festeiros, os homens entregam as carnes coletadas no período de caça, símbolo de bondade, solidariedade e oferenda da selva, domínio dos Amazanka (Sarayaku, 2022). Como símbolo da fertilidade e abundância da Mãe Terra, as mulheres continuam oferecendo chicha nos dias que seguem a festa. Respeitando um antigo ritual de boas-vindas, as festividades prosseguem durante quatro dias, onde são trocados presentes, há comida comunitária e agradecimento à natureza. Ao final da festa, as peles dos animais caçados são devolvidas à Sacha (Pueblo originario kichwa de sarayaku, 2022).

Este ritual sagrado da Uyantza simboliza a vida e reafirma a validade e soberania do Povo Original Kichwa de Sarayaku. É um ato de unidade e solidariedade entre os povos e uma gratidão aos Amazanka, aos Nunkuli e à Mãe Terra, pela bondade e abundância que a Mãe Natureza lhes concede todos os dias. Pueblo originario kichwa de sarayaku, 2022

Conclusão

Observando pontualmente a circulação e presença da caja kichwa de Sarayaku podemos ter uma breve noção de como o modo de vida comunitário e a relação harmoniosa com a biodiversidade são eixos fundamentais que articulam o cotidiano dos Kichwa Runa de Sarayaku através de sociabilidades, lutas, modos de saber, fazer e de se relacionar com os territórios amazônicos.

O desenvolvimento de pesquisa de campo e vivência na Amazônia equatoriana puderam colaborar na ampliação da observação da circulação de objetos, principalmente os musicais, integrados à vida social e seus protagonismos em festividades amazônicas, investigação que tenho dedicado em meus percursos acadêmicos.

Bibliografia

ACOSTA, Alberto. O bem viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos.  Tradução de Tadeu Breda. São Paulo:  Autonomia Literária. Ed. Elefante, 2016.

CALAPUCHA, A.; ANDY, P.; CALAPUCHA, L.; LÓPEZ, H. S.; SHIGUANGO, K. C.; TANGUILA, A.; TANGUILA, D.; YASACAMA, C. Sabiduría de la Cultura Kichwa de la Amazonía Ecuatoriana. Tomo I e II. Quito/Cuenca: Universidad de Cuenca/ Dineib/ Unicef, 2012. hhttp://dspace.ucuenca.edu.ec/handle/123456789/25660

CUBILLO-GUEVARA, Ana Patricia et al. El Origen del Buen Vivir: el plan amazanga de la opip. Huelva: Ediciones Bonanza, 2019. 274 p. Disponível em: https://edicionesbonanza.es/catalogo/el-origen-del-buen-vivir-el-plan-amazanga-de-la-opip.

G., Eduardo Tamayo. Venimos en nombre de todas las vidas de la selva. 1992. Publicado en “Colombia Hoy”, Nº 102, Bogotá, junio-julio de 1992. Disponível em: https://www.alainet.org/es/active/23002. Acesso em: 10 nov. 2023.

PUEBLO ORIGINARIO KICHWA DE SARAYAKU. Uyantza. 2022. Disponível em: https://sarayaku.org/sarayaku-celebrara-la-fiesta-de-la-unidad/. Acesso em: 02 nov. 2023.

_____________. Declaración Kawsak Sacha – Selva viviente, ser vivo y consciente, sujeto de derechos. 2018. Disponível em: https://sarayaku.org/wp-content/uploads/2017/01/1.Declaraci%C3%B3n-Kawsak-Sacha-26.07.2018.pdf. Acesso em: 10 nov. 2023.

_____________. Elaboracion de tambor en uyantza. 2022. Disponível em: https://sarayaku.org/elaboracion-de-tambores-tradicionales/. Acesso em: 02 nov. 2023.

_____________. Kawsak sacha – selva viviente. 2022. Disponível em: https://sarayaku.org/propuesta-kawsak-sacha/. Acesso em: 02 nov. 2023.

_____________. El ritual de la cacería y la pesca. 2022. Disponível em: https://sarayaku.org/1501/. Acesso em: 02 nov. 2023.

SANTI, E. Warmipangui Kichwa Canelos (Amazonía Ecuatoriana): memoria, afectividad, cuerpo y persona. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Departamento de Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

SANTOS, Marina Ghirotto. O devido dilúvio: um convite à uyanza. Actas del VI Congreso de La Asociación Latinoamericana de Antropología: Desafíos emergentes: antropologías desde América Latina y el Caribe, Montevideo, v. 6, n. 1, p. 429-439, jun. 2022. Disponível em: https://asociacionlatinoamericanadeantropologia.net/portal/wp-content/uploads/2022/06/ALA-ACTAS-DEL-CONGRESO-6-WEB.pdf. Acesso em: 08 out. 2023.

WHITTEN, N.; WHITTEN, D. Puyo Runa: imagery and power in modern Amazonia. Urbana: University of Illinois Press, 2008.


[1] Kurakas são autoridades tradicionais que representam uma das sete regiões que compreendem o território de Sarayaku (Kali Kali, Sarayakillu, Chuntayaku, Shiwakucha, Puma, Kushillu Urku e Mawka Llakta).

[2] Além de Pachamama, existem outros seres que zelam pelos ecossistemas que integram este território.  De acordo com Enoc Santi (2022, p.180) Amasanga, ou Amazanka, é para os povos Kichwas “o grande guardião da selva que a tomou como seu lar, mantém em bom estado e equilíbrio do meio ambiente, da diversidade biológica e dos recursos naturais, e fez sua casa nos troncos e árvores”. Amazanka é um mestre-protetor-dono de Sacha, o espaço da floresta, (Santos, 2022) e segundo a cosmopercepção Kichwa é quem controla os relâmpagos e trovões, som este que está relacionado ao som das cajas (Whittens, 2008).

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