Amazônias em Diálogo: Arte Contemporânea e Alternativas Sistêmicas

Brenda de Oliveira. Doutoranda em Estética e História da Arte no PGEHA do MAC USP, Universidade de São Paulo.

INTRODUÇÃO

A palavra “Amazônia” é abrangente e, apesar de sua aparente simplicidade, encerra uma complexidade intrincada. Do ponto de vista geográfico, a Amazônia engloba várias entidades distintas, embora entrelaçadas e sobrepostas, que se localizam ao norte da América do Sul e cujas nuances não podem ser negligenciadas (Albert et al. 2018). Bacia de drenagem, bacia sedimentar, província biogeográfica, bioma e unidade geopolítica ― essas dimensões interligadas lançam luz sobre a diversidade conceitual que subjaz ao termo.

No contexto das fronteiras administrativas e políticas, a abrangência da Pan-Amazôniase estende por oito nações distintas, englobando Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e incluindo o departamento ultramarino da Guiana Francesa, onde a floresta amazônica permeia seus territórios. No entanto, é crucial compreender que a Amazônia vai muito além das demarcações geográficas mencionadas: ela se revela como um local repleto de significados históricos e culturais que ultrapassam as fronteiras físicas ― estas, muitas vezes estabelecidas por meio de narrativas coloniais, disputas geopolíticas e apropriações hegemônicas de terras.

Diantes da multiplicidade de percepções dentro de diferentes comunidades que transcendem qualquer delimitação regional, é crucial compreender que tanto a Amazônia brasileira quanto a equatoriana desempenharam um papel central na construção deste território ao longo dos séculos, embora não estabeleçam fronteiras diretamente e nem vivenciem um ecossistema uniforme, abrigando povos, etnias e grupos linguísticos distintos.

Ao visitar o Museu Arqueológico e Centro Cultural de Orellana (MACCO), localizado no nordeste da Amazônia equatoriana, na cidade de Coca, província de Orellana, observa-se a importância histórica da região durante a colonização espanhola. O museu destaca-se por abrigar um valioso patrimônio arqueológico, que foi associado a grupos étnicos que habitavam a área durante a chamada Fase Napo (1.100-1.500 DC). Entre os artefatos em exibição, destacam-se cerâmicas funerárias, incluindo peças antropomórficas e vasos, além de outros utensílios como pratos, escudelas e candeeiros, mencionados nas crônicas de Frei Gaspar de Carvajal como a melhor louça que já se viu no mundo (Medina, 1894, p. 44). A localização estratégica do museu, às margens do Rio Napo, navegado por Francisco de Orellana em sua expedição pioneira pelo Rio Amazonas em 1542, confere-lhe uma importância singular na compreensão não apenas do patrimônio arqueológico da região, mas também da exploração inicial desse rio.

Paralelamente, a Amazônia brasileira desempenhou um papel crucial na história amazônica nos primeiros ciclos de modernidade, sobretudo nas ocupações e assentamentos localizados estrategicamente na foz do Rio Amazonas. No período colonial, a América Portuguesa esteve dividida entre duas unidades, o estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará e Maranhão, resultado de uma reorganização territorial promovida em 1751 por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal.

Neste ensaio, propõe-se estabelecer uma comparação entre as realidades e contextos encontrados na Amazônia do Brasil e do Equador, com o intuito de abordar algumas alternativas sistêmicas às problemáticas decorrentes do legado colonial na região. O enfoque deste estudo recai sobre o que a historiografia de arte usualmente chama de visualidade amazônica, especialmente no que tange à arte contemporânea e às indagações suscitadas por uma abordagem decolonial. Destaca-se, nesse contexto, a obra do artista brasileiro Joelington Rios (Jamary dos Pretos, 1997), pautada na identidade quilombola, em diálogo com o pensamento ancestral Selva Vivente, uma visão holística e interconectada da natureza, conforme postulado pela comunidade quíchua na região de Sarayaku, no Equador.

Ao propor esta análise comparativa entre narrativas, busca-se refletir sobre as complexidades de um diálogo multifacetado entre identidade, resistência e preservação. Este ensaio tem como objetivo compreender como expressões diversas nas Amazônias contribuem para um entendimento mais profundo de alternativas sistêmicas, isto é, de abordagens que reconhecem a interconexão e interdependência de diversas crises e desafios enfrentados na contemporaneidade. Apesar de focarem em aspectos distintos, tais expressões convergem para a preservação e resistência contra as adversidades históricas enfrentadas na região.

AMAZÔNIA QUILOMBOLA E A ARTE CONTEMPORÂNEA

De proporções continentais, o território da Amazônia é alvo de constantes disputas. Por um lado, há a disputa pelo controle de seu território geográfico, que envolve interesses relacionados à sua extensão espacial, biodiversidade, fronteiras e recursos naturais, abrangendo projetos governamentais, empresariais, sociais e estrangeiros. Por outro lado, há uma disputa no campo da significação, onde se entrelaçam interesses da dimensão discursiva: disputa-se sobre o que é a Amazônia e o que ela significa (COSTA, 2021)[1] [2] . Neste território em disputa, incorrem também os interesses das artes visuais pela Amazônia, considerando seu campo de atuação na visualidade e na construção de imaginários e processos identitários.

Na contemporaneidade, as artes visuais desempenham um papel crucial ao apresentar diferentes imaginários amazônicos, fundamentados em questões de identidade e diversidade. Essa expressão artística é fruto de um hibridismo cultural que revisita as tradições dos povos originários, a invasão europeia, as diásporas negras, os ciclos desenvolvimentistas, seus declínios e reinvenções, assim como temas urgentes relacionados ao meio ambiente e às mudanças climáticas.

Para uma análise mais abrangente do imaginário amazônico, suas perspectivas e significados no século XXI, tomemos como referência a arte contemporânea do artista visual Joelington Rios. Rios é um jovem artista visual nascido e criado no território quilombola Jamary dos Pretos, no município de Turiaçu, ao norte do estado do Maranhão, parte da Amazônia maranhense. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 19 anos para intensificar e desenvolver seus estudos em arte.

Por ocasião da primeira viagem de retorno do artista ao seu quilombo, em 2020, nasce a série Entre Rios e Mocambos. Nela, o artista explora diversas formas de expressão, como fotografia, escultura, instalação, performance, vídeo e arte têxtil, em diversos meios e materiais, a partir dos quais ele trabalha com conceitos de sua experiência como amazônida e quilombola.

Na obra Salmoura (2023) estão em destaque o item conhecido como mosquiteiro e o elemento sal (Figura 1). Segundo o artista: “O mosquiteiro, assim como o sal, sempre estiveram presentes nos meus olhos e na minha língua no quilombo” (RIOS, 2023), localizada em região contento tanto água doce do rio quanto influência marítima. Recentemente, o artista iniciou uma reflexão sobre a emblemática presença e função do mosquiteiro em sua residência no quilombo, ao mesmo tempo em que transporta essa análise para o contexto urbano da cidade do Rio de Janeiro, onde vive atualmente. 

Figura 1: Composição de Joelington Rios. Salmoura. Instalação e performance (2023). Fonte: Acervo do artista / Instagram

Na instalação, o mosquiteiro passou a ser compreendido não apenas como um dispositivo de proteção contra insetos, mas como uma tecnologia multifacetada. Ele não só resguarda de mosquitos, mas atua como uma espécie de guardião que cobre, protege e vigia sonhos, seres e corpos. Seu papel se estende do momento de dormir ao acordar, permeando o espaço-tempo entre os sonhos e a vida cotidiana. Para Rios, torna-se uma entidade, um ser que habita a atmosfera, permeando o imaginário, camas, corpos e existências amazônicas.

A importância do sal na história do quilombo é descrita pelo Sr. Estanislau no livro Jamary dos Pretos, Terra de Mocambeiros (1995), de José Paulo Freire Carvalho. Na publicação, relata-se que embora o quilombo fosse de difícil acesso, o isolamento não era uma regra. O caso de Jamary dos Pretos se destaca como exemplar nesse aspecto, já que uma intrincada rede de colaboração era estabelecida entre os mocambeiros, membros do quilombo, e aqueles que permaneciam escravizados nas fazendas circunvizinhas. Estes desempenhavam um papel crucial ao garantir o fornecimento de certos artigos não disponíveis nas matas, como o sal. Paralelamente, os mocambeiros empreendiam incursões noturnas para resgatar os outros negros que ainda estavam sob regime de escravidão.

Inspirado por essa significativa menção histórica, Joelington Rios reavaliou o uso do sal e suas propriedades de salmoura, compreendendo-o como um agente de cura e preservação. Por meio da criação de estruturas performáticas e instalativas, o artista busca visualizar as conexões entre os rios e mocambos, o sal e a terra, os mosquiteiros e os corpos, tanto dentro quanto fora da vasta Amazônia. Rios afirma: “Tecnologias de cápsulas triangulares atmosféricas capazes de nos transportar e curar nossos corpos que também estão doentes, tecnologias capazes de nos manter vivas, assim como nossos saberes” (RIOS, 2023).

Analisar as iniciativas artísticas e culturais dentro dessas comunidades revela um tecido complexo de expressões que vão desde as práticas tradicionais até manifestações contemporâneas. A trajetória artística de Rios é um testemunho do potencial transformador da arte contemporânea na Amazônia. Iniciando sua jornada como artista adolescente em seu quilombo, Rios desenvolveu uma abordagem multidisciplinar, explorando além da fotografia para incluir escultura, instalação, performance, vídeo e arte têxtil em seu repertório artístico. Ao explorar esses temas, Rios não apenas apresenta uma visão pessoal e artística da Amazônia, mas também desafia as percepções convencionais sobre a região. Sua obra se torna uma forma de resistência cultural, enfrentando a violência epistêmica histórica que considerava a Amazônia como um “vazio” a ser preenchido.

AMAZÔNIA EQUATORIANA E A SELVA VIVENTE

Na Amazônia equatoriana temos um exemplo notável de resistência às forças coloniais e neocoloniais: o povo indígena em Sarayaku, localizado na Província de Pastaza, no curso médio da bacia do rio Bobonaza, em um território de aproximadamente 135 mil hectares, coberto majoritariamente por floresta amazônica primária (Figura 2).


Figura 2: Território indígena em Sarayaku, localizada na Província de Pastaza, Equador. Fonte: Gabriela Paiva de Toledo.

Segundo a cosmovisão de Sarayaku, o ecossistema de seu território é composto por três unidades ecológicas essenciais: Sacha (selva), Yaku (rios) e Allpa (terra), que sustentam uma infinidade de espécies de fauna e flora fundamentais para sua existência (Menon, 2020, p. 7).
            Diante dessa cosmovisão, o povo originário de Sarayaku está à frente da iniciativa Selva Vivente, ou Kawsak Sacha na língua quíchua. O conceito de Selva Vivente é central para a vida em Sarayaku, que entende a natureza como um ser consciente, composto por todos os elementos da selva, incluindo seres humanos. No manifesto escrito, enfatiza-se que o Kawsak Sacha é um ser vivo, com consciência, constituído por todos os seres da selva, desde os mais infinitesimais até os maiores e supremos. Este entendimento profundo da interconexão entre os seres humanos e a natureza destaca a importância de preservar não apenas o meio ambiente, mas a harmonia entre todas as formas de vida.
            O caso de Sarayaku destaca como as comunidades tradicionais não apenas preservam seu ambiente, mas também estabelecem uma relação de respeito e equilíbrio com a natureza. Nesse contexto, a Amazônia, historicamente considerada como um espaço vazio ou a ser explorado, demanda uma transformação epistêmica. Ao desafiar a narrativa de vazio e explorar a complexidade da selva, essas formas de expressão emergem como elo para uma compreensão mais aprofundada e uma apreciação da Amazônia em sua plenitude.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Amazônia, cuja preservação é crucial para o equilíbrio ambiental global, alternativas sistêmicas surgem como ferramentas poderosas contra a degradação. A interseção entre arte contemporânea, natureza amazônica e comunidades tradicionais desempenha um papel central na promoção desse objetivo.

A valorização das obras de Joelington Rios busca integrar a experiência quilombola ao imaginário global, defendendo a identidade e a biodiversidade amazônica. Neste sentido, as ideias do teórico indígena Ailton Krenak (2023) [3] [4] destacam a negligência em relação à Amazônia e reforça a importância da preservação por seu valor intrínseco e não por seu valor utilitário.

As ideias de João Moreira Salles (Salles, 2022, pág 37) ressoam nessa linha, argumentando que a ocupação predatória resulta de uma falha epistêmica. A destruição, segundo Salles[5] [6]  (2023), é facilitada pela falta de interesse, curiosidade e afeto, um padrão repetido historicamente na Amazônia.


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O trecho em questão foi retirado de uma apresentação oral realizada por COSTA, durante a Aula Magna intitulada “A Visualidade Amazônica: inclusões, exclusões e permutas com o campo artístico” do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima, transmitida ao vivo em 12 de julho de 2021 e disponível no YouTube. Como se trata de uma fonte online, não há paginação para referenciar.

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Ideia retirada de entrevista oral concedida ao podcast Ilustríssima conversa “Tragédia yanomami mostra que clube da humanidade não é para todos” de janeiro de 2023, portanto sem paginação.

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Entrevista concedida ao jornalista Eduardo Sombini, sem paginação.

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