Arte Arara da Volta Grande do Xingu

Arte Arara da Volta Grande do Xingu: natureza, memória e resistências[1]

Renata Utsunomiya. Universidade de São Paulo, Instituto de Ciência Ambiental, Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental

O rio Xingu, na Amazônia brasileira, é conhecido como um  rio de grandes cachoeiras de difícil navegação, o que por muito tempo desafiou o avanço da colonização acima da região da Volta Grande do Xingu, ou Volta Grande. A bacia do rio Xingu atualmente é povoada por diferentes povos indígenas de troncos linguísticos como Tupi, Tupi-Guarani, Caribe e Jê, com indícios de ocupação de aproximadamente 3000 anos até o presente, evidenciadas por estudos arqueológicos de cerâmicas Tupi e Karib (Garcia, 2021). Entre estes povos indígenas, os Arara são avistados pela 1ª vez apenas em 1853, pois eram povos do interior das florestas, diferentemente dos Juruna, canoeiros, que habitavam as ilhas do Xingu, e eram os guias e navegadores dos viajantes que passavam pela região (Nimuendaju, 1948). A exploração da borracha no final do século XIX, seguida de outras atividades econômicas foram intensificando a ocupação na região, como o garimpo de ouro e caça de peles de “gato” (onça e outros felinos) além da construção da Rodovia Transamazônica trazendo levas de migrantes de outras regiões do país(Arara et al., 2020; Nascimento, 2024). A região da Volta Grande, perpassada por esses ciclos econômicos, hoje possui populações de ribeirinhos, colonos, garimpeiros e indígenas, dentro e fora das duas Terras Indígenas (Arara da Volta Grande do Xingu e Paquiçamba, do povo Juruna).

Os Arara da Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu, como descreveu o então historiador, intelectual, curador e guia espiritual Leôncio Arara (Arara et al, 2020):

somos como somos e não negamos, tem preto e tem branco (…) mas também somos parente de todo esse povo que lhe falei que andou com minha mãe Firma, meu avô Pira e minha avó Tintim e que viveram aqui” [Leôncio Arara] (Patrício, 2006)

     As comunidades da Volta Grande passaram por um histórico de relações interétnicas que denotam a violência da investida colonial nos povos originários, e atualmente a Volta Grande é um sistema multiétnico particular (Xavier Ferreira, 2024) com diferentes povos indígenas que lutam por reconhecimento de sua identidade. A Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu localiza-se no Pará, na Amazônia brasileira, com cerca de 240 habitantes e foi demarcada entre 2004 e 2015. São descendentes dos povos Arara e Juruna e de não-indígenas, e optaram pela “certificação” como povo Arara, pela memória dos “antigos”, como Pirá e Tintim Arara, que se estabeleceram no atual território onde vivem (Arara et al., 2020).

Os Arara[2] habitam no trecho do Xingu que passou a ter parte das águas desviadas para a geração de energia pela Hidrelétrica de Belo Monte, que opera desde 2015. A Volta Grande passou a sofrer impactos pela redução da vazão, ameaçando não apenas o ecossistema, mas também a reprodução cultural e o sistema de conhecimento dos Arara interconectado com esse trecho único do rio Xingu.

Os Arara e a co-existência com a Volta Grande do Xingu

As memórias de Leôncio Arara podem ser consideradas símbolo de sua identidade cultural e são essenciais para o que os Arara denominam como o “fortalecimento da cultura” (Arara et al., 2020). Leôncio Arara demonstra as formas de coexistência dos Arara com a Volta Grande. Enquanto curador, benzedor e conhecedor dos remédios do mato, e reconhecido por outros como pajé, Leôncio narrava sobre o rio e a mata em suas vidas:

“A minha cultura é floresta, eu trabalho com as florestas, eu não acredito que doutor me trate, eu não acredito que tomando remédio na farmácia eu fique bom, (…) todo material meu é da floresta     (…) [Leôncio Arara] (Arara et al., 2020, p.21)

Leôncio narrava uma série de preceitos e regras sobre o rio e a mata que eram necessários serem respeitados, sobretudo porque      ali haviam muitos seres não-humanos “donos” que regiam as águas, a floresta e os animais:

“(…) eu não ando aí à toa no rio sabe, eu espero a água do rio, porque ela é viva. (…) quando a pessoa anda pelo mato, a mata geme, a mata ri, a mata faz toda coisa, a mata, ela é viva, e é malassombrada, sabe, ela é viva, e é malassombrada, a mata faz tudo (…) do mesmo jeito é a água, a água conversa, ela faz tudo, de noite você dormindo perto de uma água, correnteza que seja forte, você escuta todo movimento (…) (Leôncio Arara, 2014) [3]  

A relação com o rio e a mata enquanto seres vivos narrada por Leôncio remete a diferentes narrativas indígenas de coexistência com a natureza com visão bio/cosmocêntrica (Pascual et al., 2023), no qual a floresta e o rio, são sujeitos vivos, e que, junto a seres não-humanos, possuem agência (RiverOfLife et al., 2022) e, portanto, sujeitos a direitos próprios. O pensador Ailton Krenak narra sobre cosmovisões de diferentes povos indígenas, que convivem com o “espírito da floresta”, e sobre a visão do rio enquanto um parente, o Rio Doce Watu, avô de seu povo (Krenak, 2020).

Diferentes povos originários atualmente reivindicam uma visão comum de “simbiose com a floresta viva”. O Equador foi o primeiro país a instituir direitos da natureza em sua constituição, e os indígenas Kichwa da comunidade de Sarayaku também reivindicam, através da declaração “Kawsak Sacha”, equivalente ao conceito de Bem viver (Acosta, 2016), o conceito de Floresta Viva (“Selva Viviente”), “ser vivo e consciente, sujeito de direitos”[4].

Arte Arara da Volta Grande do Xingu

A arte entre distintos povos indígenas assume nuances e significações próprias, onde os conceitos de natureza, cultura, belo e estética se entrecruzam e estão profundamente imbricados às ontologias particulares de cada povo. A arte está em todas as esferas da vida dos povos indígenas     , com uma inexistência de distinção entre artefato e arte, ou seja, qualquer objeto      indígena carrega uma mensagem artística, em uma prática em que arte e vida se confundem (Ribeiro, 1978; Lagrou, 2009). Como narrou o artista indígena Macuxi, Jaider Esbell, o indígena e a arte possuem uma origem comum e indissociável e há necessidade de criar sistemas de arte indígena, com sentidos e dimensões próprios de cada cultura (Esbell, 2021).

Os artistas Arara se inspiram na Volta Grande e na sua cosmovisão para criarem suas obras. Dentre estes,      são aqui apresentados 4 artistas que vem se destacando na criação de pinturas e estampas, em quadros e tecido, e tecelagem com miçangas. São eles: Peta, Esteban, Toroti e Broca Arara (Figura 1).

Figura 1 – Artistas Arara da Volta Grande do Xingu: Peta, Esteban, Toroti e Broca Arara (da esq. para dir.). Fotos: Renata Utsunomiya

Maria do Perpétuo Socorro Arara, Peta, é contadora de estórias, benzedeira, e matriarca da aldeia Itkoum. Suas estórias falam sobre espíritos da água, sobre como seus antepassados, os Arara “antigos”, ou “tronco velho”, viviam e conviviam com a floresta e o rio. Suas obras atuais retratam antigos como o velho Pirá (seu avô), pássaros, peixes entre outros animais, utilizando cores vivas e pintando a mão livre em madeira nas paredes das casas, ou em tecidos de grande dimensão.

Edson Junior Arara, Esteban, é um jovem filho de Peta Arara da aldeia Itkoum, acostumado a caçar e pescar com sua família, retrata com detalhes a biodiversidade do território Arara. Junto com sua mãe, carrega em suas pinturas estórias e comportamentos de determinados animais     , como o camaleão (iguana) que “arrupeia” quando é abordado. Além da ilustração em papel e pintura em mão livre, também vem aprendendo e recriando seus desenhos com a técnica do estêncil[5]. Além disso, cria desenhos de animais para serem tecidos em pulseiras e colares de miçanga.

Torotji Barbosa Arara, Toroti, é um jovem artista da aldeia Terrawangã que vem se destacando na arte de tecer miçangas, sempre criando novas ideias e produzindo principalmente colares e pulseiras pictóricos representando animais, o rio e a vegetação (como as matas de igapó). Também confecciona cocares, além de pintar e tecer os grafismos Arara em outros artefatos que contam estórias de seu povo, como a do Pai da Mata, o Jurupari, espírito que é dono e cuida da floresta (Arara et al., 2020). Além de tecer com as contas de vidro, Toroti também estampa tecidos com a técnica do estêncil, pinta quadros e tecidos à mão livre.

Adailton Barbosa Arara, o Broca,      gosta de desenhar e pintar quadros e panos à mão livre e com a técnica do estêncil. Ele afirma que toda arte que faz tem uma estória a ser contada, e gosta mais de representar árvores, bichos, grafismo e paisagens. Essas são paisagens culturais que relembram a memória de infância com o Rio Xingu:

Uma ideia assim que veio na cabeça, e depois que eu comecei a desenhar, ela veio me lembrando histórias minhas mesmo passada, entendeu? E ele é infância minha. Aí eu fui fazendo e fui gostando e fui lembrando de esses tipos de festa, nossa e também a coleta do ovo de tracajá e fui fazendo aí em seguida. (Adailton Arara, 2023)[6]

Estórias em um território em transformação também carregam um “impacto” por trás, como descreve Adailton, sobre      os Abianã, a queixada na língua indígena Arara[7] (ou porcão como é chamado localmente). Trata-se de      um animal que costumava “cair na água” em grandes bandos na época da subida das águas, gerando uma proveitosa caçada a que todos se dedicavam, mas que não ocorreu mais após a implantação da hidrelétrica s.

Um dos quadros de Adailton, intitulado “Pesca cultural Arara da Volta Grande” possui dimensão 40×30 cm e foi pintado com tinta de tecido. Segundo o mesmo,  as cores foram selecionadas a partir das paisagens que observa no Rio Xingu.

Figura 2 – Quadro «Pesca Cultural Arara da Volta Grande» de Adailton Arara (Broca) de 2022. Foto: Renata Utsunomiya. Itens: (a) pintura corporal dos bichos; (b) Palmeira Tucum; (c) animal Capivara; (d) Peixe Pacu branco; (e) Pesca com flecha; (f) Peixe Acari; (g) Peixe Tucunaré; (h) Peixe Ariduia; (i) Árvore Arapari florida; (j) Pesca com linha de mão; (k) Pássaro corta água; (l) Canoa carregada com peixes pescados e remo; (m) Arraia de fogo; (n) Quelônio Tracajá; (o) Pássaro Carará; (p) Pássaro Manguari

A árvore no centro é o arapari, que nessa época está florido e os peixes comem as flores quando caem na água. As canoas cheias de peixes e tracajás (quelônios) indicam a fartura de peixes de diferentes espécies, como o pacu branco que é flechado por um Arara “antigo”, além dos tucunarés, acaris e ariduias, que também são capturados com a “linha de mão” ou “tela”, principal técnica de pesca utilizada pelos Arara. Os ambientes como praias, pedrais e os sarobais – locais de vegetação de árvores baixas com muitas fruteiras com pedras e areia grossa (Juruna, Arara, 2018) – em breve serão submersos com a subida das águas e estão repletos de espécies, como a palmeira tucum, que alimenta animais de caça, como a capivara. A obra retrata o período do final do verão amazônico, com início da subida das águas que adentram os “furos”, canais que “cortam” e permanecem separados no período de estiagem e que, com a subida das águas, tornam-se importantes locais para a pesca destes povos      

Pintando e tecendo memórias de resistência Arara

A arte Arara denota a relação desse grupo indígena com o território da Volta Grande do Xingu, enquanto forma de narrar modos de vida e a coexistência com a natureza e seres não-humanos     . Povos indígenas, como os Arara, são reiteradamente excluídos nos modelos de desenvolvimento propostos para a Amazônia baseado em grandes obras. Dessa forma, a Arte Arara, visibiliza as consequências desse modelo, ao contar estórias e relembrar memórias que descrevem transformações socioecológicas. Como Jaider Esbell afirma: “não é um quadro, flecha ou cerâmica; é um feitiço para falar de um assunto sério que é a urgência ecológica” (Aliprandini, 2021, p.23), i.e., a arte que traz mensagens essenciais sobre relações humano-natureza e futuros possíveis no contexto atual de crise ambiental e climática.

A prática artística também é voltada para uma afirmação étnica frequentemente colocada      em xeque pelo racismo na sociedade, uma forma de contar a “nossa história verídica” (Arara et al., 2020, p.32), a memória de um território e de paisagens culturais do povo Arara da Volta Grande do Xingu. Em busca do “fortalecimento cultural” (Arara et al., 2020) os Arara recontam estórias através de sua arte, pois como afirma Krenak (2020, p.27): “adiar o fim do mundo é contar mais uma estória”.

 Esse estudo se debruça sobre as criações artísticas atuais dos Arara e a relação com o sistema socioecológico da Volta Grande do Xingu, território perpassado por violências no qual diferentes tradições culturais se fundiram e se transformaram. Como parte do Seminário Internacional Conectar a fronteira amazônica, este vem contribuindo para compreender a arte Arara no contexto atual de ascensão da arte indígena contemporânea, a produção artística fora dos grandes centros e a perspectiva histórica da cultura visual e material da Amazônia.


Referências

Acosta, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.

Aliprandini, Stefani Valente. A arte indígena contemporânea enquanto prática decolonial: Uma análise a partir da exposição Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea (2021). Trabalho de graduação, Universidade de Passo Fundo, 2021.

Arara, Adalton Ferreira do Nascimento, Eduardo Xavier Ferreira, Regina Polo Müller, Renata Utsunomiya. “A Casa de Memória Leôncio Arara e os Arara da Volta Grande do Xingu”, Espaço Ameríndio, 14, n. 1 (2020): https://doi.org/10.22456/1982-6524.100737

Esbell, Jaider. “Arte indígena contemporânea e o grande mundo”. Select Celeste (2021): https://select.art.br/arte-indigena-contemporanea-e-o-grande-mundo-2/

Garcia, Lorena. “Tupi-Carib Histories in the Middle-Lower Xingu”. Em Koriabo: from Caribbean Sea to the Amazon River, coordenado por Barreto, Cristiana, Helena Lima, Stéphen Rostain, Corinne Hoifman. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2021.

Juruna e Arara, Povo. Plano de gestão territorial e Ambiental Volta Grande do Xingu: Terras indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e Área Indígena Juruna do Km 17. Altamira: Verthic, 2018, https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/0id00095.pdf.

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2020.

Lagrou, Els. Arte Indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

Nascimento, Hilton. Os Juruna e Arara da Volta Grande e a ocupação do médio Xingu. Altamira: Verthic, 2024.

Nimuendajú, Curt. “Tribes of the Lower and Middle Xingú”. Em: Handbook of South American Indians vol. 3: The tropical forest tribes. Handbook of South American Indians, editado porSteward, Julian H. Washington: Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology. 1948.

Patrício, Marlinda. Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu. Brasília: FUNAI/CGID, 2006.

Ribeiro, Berta. Arte Indígena, Linguagem Visual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

RiverOfLife, Martuwarra, Unamen Shipu Romaine River, Anne Poelina, Sandra Wooltorton, Laurie Guimond, Guy Durand Sioui. “Hearing, voicing and healing: Rivers as culturally located and connected”. River Research and Applications, 38(3), (2022): https://doi.org/10.1002/rra.3843 Xavier Ferreira, Eduardo Cezar Cândido. Arara da Volta Grande do Xingu: história, mistura, emergência étnica e rivalidade. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2024.


[7] A língua Arara pertence ao tronco linguístico Caribe e os Arara da Volta Grande do Xingu tem realizado atividades nas escolas para aprendizado da língua indígena, junto com professores Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca.


[6] Adailton Arara (artista), em entrevista com a autora, 21 de novembro de 2023.


[5] Atividades do Projeto Básico Ambiental – Componente Indígena da hidrelétrica de Belo Monte vem sendo desenvolvidas na Terra Indígena, como as oficinas de design em artesanato que introduziram a técnica do estêncil para a produção de tecidos estampados, além de oficinas com tecelagem de miçangas e outras ações de formação e comercialização de artesanato indígena.


[4] Pueblo originario Kichwa de Sarayaku, “Kawsak Sacha Declaration”, https://kawsaksacha.org/

    


[3] Leôncio Arara (pajé), em entrevista com a autora, 17 de outubro de 2014.


[2] Na região do Médio Xingu há três Terras Indígenas do povo Arara (Arara, Cachoeira Seca e Arara da Volta Grande do Xingu. Nesse artigo qualquer menção aos indígenas Arara referem-se aos pertencentes ao subgrupo da Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu.


[1] Agradecimentos a Carmen Salvador, Patricia Zalamea, Maria Berbara, Julián Serna, Erêndira Oliveira e Mateus Nunes pela coordenação e execução do projeto Connecting Amazon Basin, além de Adriana Palma, Brenda Oliveira, e Gabriela Toledo e Eduardo Xavier Ferreira pela revisão e sugestões bibliográficas.

Scroll al inicio